Maurício
A FICÇÃO, PORQUE A VIDA NÃO BASTA!
Alguns livros entram na nossa história e merecem um lugar solene. É o caso, na minha, de “O Colecionador”, obra de estreia do inglês John Fowles (1926-2005), publicada em 1963, uma das boas apostas que fiz nos anos 1980, quando meu deslumbramento por literatura engatinhava. Três década depois, o romance de Fowles continua me enchendo de assombro. Minha sonora indicação vai aqui em forma de resenha. Dê uma espiada. [MB1]
RESENHA DO LIVRO “O COLECIONADOR”, DE JOHN FOWLES
Pelo Professor Maurício Bronzatto
O Calibã de Fowles não é o aborígine de A Tempestade, de Shakespeare, mas, tal como um de seus arquétipos, tem os olhos de peixe. Quem haveria de suspeitar que esse olhar cinzento e inexpressivo, uma luz perdida no fundo, sem trair o menor ar de tirania, escondesse tanta loucura? Frederick Clegg – o colecionador –, modesto funcionário do Anexo da Câmara Municipal, é de uma mediocridade que faz pena e desperta todo tipo de troça dos colegas de trabalho. Nunca ter se juntado a eles, nem para apostar na loteria, um dia teve compensação: quando a sorte lhe acenou, não precisou reparti-la. O ócio proporcionado pela fortuna enfiou-lhe uma obsessão entomológica na cabeça: incluir em sua coleção o mais sublime espécime, uma jovem de vinte anos e beleza exuberante, que via com frequência esvoaçando nas proximidades da Escola de Artes de Slade, em Londres. Preparado o cativeiro, saiu à caça da Mazarina Azul. A “garrafa da morte”, onde a raridade estaria daí em diante à sua mercê, era o quarto de teto baixo de uma casa de campo isolada, um porão subterrâneo a outro porão – verdadeiro submundo claustrofóbico, que deixava de existir assim que uma espessa porta de carvalho intencionalmente construída, à prova de ruídos e do lado de fora disfarçada de armário, era aferrolhada.
Frederick é invisível às mulheres. Desconfiado de que lhe faltou qualquer coisa de animal ao nascer, uma dotação genética que o teria tornado atraente, consola-se com a própria opinião de que o mundo seria um lugar melhor se houvesse mais gente como ele. Miranda enxerga-o diferente: a ausência quase absoluta de desejo, tragédia das tragédias, faz de Calibã um espaço vazio disfarçado de humano. Apesar de existir como quem rasteja pela vida, não fazendo outra coisa senão se desculpar, mata, em si mesmo e ao redor, sem sequer ter disso consciência, toda a beleza, a começar pelo massacre que, como um colegial, impõe às frágeis borboletas. Sua crueldade latente, caiada de pretensa piedade, é abominável: estando Miranda sob efeito do clorofórmio, despe-a para fotografá-la e garantir a si um pouco do prazer de que é incapaz de consumar como homem. Faz o mesmo em outra ocasião, desta vez com o espécime favorito febril e delirante, amarrado à cama, e justifica uma e outra baixeza — como se significassem vantagem para Miranda — com o argumento de que a maioria não teria conseguido dominar-se.
Basta a Calibã possuir essa Fritilária Rainha da Espanha apenas para poder olhá-la de frente quando quiser, examinar a bela cabeleira e extasiar-se com feições tão perfeitas. Não lhe importam as palavras e os sentimentos de Miranda, tampouco seu desespero por adejar as asas, um instante que seja, à luz do dia, e respirar ar fresco no jardim. Não são as coisas humanas que o mobilizam: o espírito de Miranda, as emoções, e mesmo o corpo. O orgasmo vem de tê-la tornado prisioneira. Quase impermeável aos insultos que, numa angústia atroz, ela lhe despeja, só uma coisa parece afetá-lo: as tentativas de fuga. Unicamente nesses momentos demonstra ter nervos. Não hesitará fazer a Miranda o mesmo que às borboletas quando precisa capturá-las sem a rede: uma calculada pressão atritando os dedos, a vida a debater-se contra o inexorável e, enfim, a conhecida imobilidade. Colecionador, ele a quer sem se mexer, sempre a mesma, sempre bela.
Por que alguém haveria de objetar? Seja Miranda, seja ele próprio, seja quem for: não passamos todos de insetos. Vivemos um pouco e depois morremos. E se nascemos aleijados como a prima Mabel, quanta estupidez em deixar a deformidade ver a luz do dia! Coubesse a ele decidir, a sepultura não ficaria ansiosa. A morte, de qualquer modo, apenas rematada com um pouco mais de pressa. Tudo se resume a isso. Não há misericórdia. Não há nada.
Miranda, também inspirada nas páginas de Shakespeare, a despeito de só existir como silhueta para o colecionador, mostra-se uma personagem incrível. A generosidade de seus traços físicos é a extensão de uma vida interior movente. Embora afronte toda manifestação de fealdade humana, sabe que não pode atirá-las contra o chão como faria com peças de louça que tornassem ridícula a decoração de uma sala de estar. Miranda despreza Calibã, tem ímpetos de magoá-lo e os põe em ação, mas nunca ousa cruzar esse limiar, animada por um respeito fundamental, uma superioridade de escrúpulos. Seus esforços adivinham a batalha perdida, que ela, no entanto, atrás de sentido, continua a travar contra todo tipo de calibanismo que infesta o mundo. Opor-se a Calibã e respirar são a mesma coisa. Libertar tudo o que é livre e decente das minúsculas celas que bestas como ele, indiferentes ao que acontece fora de si, espalham como armadilhas pelo caminho: o que pode haver de mais essencial?
Enquanto Miranda resistir, com as próprias armas, não com as de Calibã, não será difícil reconhecer que quem prende é o prisioneiro, possuído por todo peso morto de egoísmo e mesquinhez doentia. Miranda não vai querer viver para olhar com complacência a feiura calibanesa das ervas daninhas rasgando o solo da sua alma.
Calibã é um corpo vazio. Nas palavras do diário de Miranda, “Não existe homem dentro dele”. Miranda não pode desistir. Sua derrota é a de todos nós. Enquanto sofrerem oposição, Calibã e sua feiura não terão o poder de, como uma voragem, engolir tudo o que é belo e vivo neste mundo.
Miranda e Calibã me deram, ainda muito imprecisamente quando li o livro pela primeira vez, um vislumbre da briga que se travava no meu submundo: uma briga entre mim e mim mesmo. Uma briga que temo ser vencida pelo pior dos lados. Miranda, como um paraíso perdido do qual, sem conhecer, eu sentisse saudade, há muito regava os mais elevados ideais sobre quem eu gostaria de ser. A beleza, dentro e fora. Mas ela nunca, até esse ponto, conseguira existir sem ter em seu encalço tamanha sabotagem – uma militância incansável que me fazia capitular vezes sem conta diante da mediocridade. Mediocridade que, desde o livro, passou a ter rosto, o de Calibã. É difícil admitir, mas Calibã não é um acessório que posso esquecer em casa quando giro a chave do portão. Ficaria contente se pudesse dizer que ele está impregnado em mim. Seria ainda melhor do que reconhecer que Calibã é, além disso, também o que sou. E lamento não ter um décimo da energia de Miranda para resistir-lhe.
FOWLES, John. O colecionador. Tradução de Fernando de Castro Ferro. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
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